4/04/2025

Chão de terra preta (Conto), de Amadeu de Queiroz



CHÃO DE TERRA PRETA 

Antigamente, no tempo dos bugres, certo caçador que andava com outros pelo mato atirou a um macuco encontrado perto de um córrego sem nome. Daí por diante todas as vezes que os caçadores queriam se referir ao dito córrego, diziam: "O Córrego do Macuco". Por essa forma, o nome da ave passou para a água corrente, foi ficando e ficou até hoje.

Tempos depois, um roceiro, que veio de longe, comprou terras servidas pelo Córrego do Macuco, e ali fez uma casa — casa de pobre — para sua obrigação: a companheira e mais cinco crianças. À beira do córrego, pai e mãe, criaram a família — os filhos na enxada, as filhas na enxada e no fogão, e logo que deram conta da tarefa, os dois velhos morreram. Os herdeiros repartiram a terrinha entre si e como tocou quase nada a cada um, cada um vendeu a sua parte e gastou o dinheiro para começar a vida. As filhas se casaram, os filhos saíram mundo afora, procurando trabalho e mulher; menos o Chico, que se casou com gente da vizinhança e ficou teimando no seu pedaço de chão, até o dia em que lhe nasceu o segundo filho, um menino.

Nessa quadra da vida, deu-lhe tanta doença em casa, a ponto de passar um ano sem trabalhar, e gastando. Por fim, quando os doentes sararam, viu-se endividado até os cabelos e teve de vender o chão e o rancho, para pagar os empréstimos.

Do pouco que possuía, só salvou o crédito, o mais perdeu tudo, até o nome que o pai lhe deixou: o córrego pegou-lhe, para sempre, o nome que, por sua vez, recebera de um macuco. A princípio era chamado — o Chico, do Macuco; depois — Chico Macuco, e por fim, só Macuco...

Mas de seu, ficou ainda com muita coisa — ficou com a obrigação e com a necessidade. Então, passou a mão na enxada, arrastou a família, foi morar em casa alheia e trabalhar no chão dos outros... Foi dar a troco de um jornal de miséria, toda a força dos braços e tudo que é tempo de luz no dia, só guardando para si as sombras da ave-maria e o escuro da noite.

E passaram muitas luzes e sombras, muita escuridão passou enquanto o jornal ia ficando no mesmo ser e a família nas mesmas privações. Mas, ao tempo que o camarada Macuco descansava um pouquinho, ia olhando à roda de si e, com o passar dos dias, foi à lavoura de todas as plantas, a conhecer a força das terras, a tirar proveito do ajutório do sol e da chuva.

O fazendeiro gostou do camarada, lhe deu casa, lhe deu serviço, e pagava pontual. A casa era de sapé, ficava na vertente, numa chapada da grota, à beira de uma terra preta, gorda, em que ninguém nunca plantou. Não tinha horta nem arvoredo nem cercado em torno, tinha a bica d'água à porta da cozinha, perto do mamoeiro velho esgalhado. O mamoeiro fazia as vezes de galinheiro, a galinha de pintos deitava-se debaixo dele; o ninho de jacá estava pendurado nele; toda a criação dormia empoleirado nos seus galhos e se abrigava do sol ou da chuva embaixo da sua folhagem.

A casa tinha dois quartos e cozinha; os quartos se encheram com as camas e com a canastra frasqueira, a cozinha ficou vazia, era maior, dava para o fogão e para se morar. Mas, porém, tudo era pobreza e pouquinho.

De manhã cedo, a menina e o menino iam à fazenda buscar o que era preciso — leite, couve, cebola de folha. Leite vinha por paga, o mais era dado; ovo, sempre havia algum em casa. A fazenda não ficava longe, as crianças iam sozinhas, mas era tão pequenas, que se sumiam no meio da estrada. A menina ia indo, carregando o caldeirãozinho, parava, olhava para trás e andava outra vez, arrastando os pés, sem brincar, sem falar; o menino fazia a mesma coisa mascando a ponta dos suspensório de tira de pano...

Nestas aperturas, o roceiro Macuco entendeu de dar um jeito na vida para poder vestir a família. O ganho não lhe deixava sobra: na vila só comprava mantimentos para a semana e, as vezes, um doce para as crianças: três biscoitinho de amendoim, duros e velhos, mas o roceiro não perguntava a idade deles, perguntava o preço.

— Três por duzentos réis? Ota!

— ...Mãe, o que é que tem em riba do doce?

— Açucre.

— Açucre antão é duro? Boba...

Quando a precisão era grande, comprava também algum remédio, pouco porém. Se um bicho venenoso mordia as crianças e elas metiam as unhas, tostava um folha de mato chimango e punha em cima da inflamação: se as bichas alvoroçavam, aplicava na barriga das crianças um empacho de erva mentruz; se a mulher sentia dor de cabeça amarrava na testa um lenço molhado em pinga com alcanfor; se ele, Macuco, ficava mofino, amarrava só um lenço na cabeça e aguentava... Mas de qualquer jeito precisava vestir a família, então pedia a Deus forças para trabalhar, mas a força brota da terra, entra pela boca, enche o peito, sai pelos braços, desce pelo cabo da enxada e entra na terra outra vez.

Ao anoitecer, o roceiro Macuco voltava para casa, com a enxada no ombro, carregando o peso da canseira aí se encontrava com a mulher, que também ia indo com as crianças, cada uma carregando o seu feixe de lenha, e todos seguiam, juntos sem dizer uma palavra...

De tanto maturar, teve uma ideia que dava esperança: plantar um fuma, na chapada da vertente, em redor da casa, de meias com o fazendeiro. Plantação alqueire de chão, pouco mais ou menos. Então, foi procurar o dono da terra, o fazendeiro, e explicou-lhe:

O chão é de boa face; a terra é própria; está em roda da minha casa; a mulher me ajudando, nós dois podemos tratar vinte a vinte e cinco mil pés de fumo, que é mais que pode levar o dito chão. O senhor me adianta as despesas e, no fim, nós partimos. O lucro é bom, mas o seu há de ser melhor porque o fumo dá soca e, a terra sendo boa, a soca também é — dá bem e serve bem o que dá. Ainda, por cima, a terra do fumal fica mais estercada, mais macia; as folhas velhas do fumo, a bagaceira dos talos, das velhas, que a planta vai largando, tudo engorda a terra que, depois,dá com fartura, sem trabalho. Macuco fez a sua proposta, explicou tudo muito bem, induzindo o fazendeiro a experimentar a meação na lavoura do fumo. O dono só entrava com a terra e abria um crédito ao meeiro; mesmo assim titubeou, imaginou, perguntou tanta coisa, e deixou a resposta para mais tarde. Mais tarde aceitou com uma dose de interesse e um pouquinho de desconfiança.

— O que for da fazenda, eu vou te fornecendo e assentando; para o que a família precisar — mantimento, remédio e roupa — eu te dou um crédito na vila; na apuração do negócio,você paga tudo o que comprou. Está combinado: é negócio a meias; tiradas as despesas, parte-se o lucro, a soca me pertence, fica de fora. Contrato escrito, não é preciso, nós somos de fiança um para o outro.

Acertaram. Macuco deu parte à mulher e como já era mês de agosto caiu, sem demora, em cima da terra. Primeiro, formou os canteiros para a semeadura, depois, colocou por cima deles uma camada fina de gravetos, folhas secas e lenha miúda; ateou fogo em tudo e, logo que a queima se acabou, os canteiros ficaram cobertos com uma camada de cinza. Deixou esfriar a cinza, espalhou esterco de curral por cima e revirou a terra na fundura de meio palmo. Assim, a terra ficou pronta para a semeadura, livre de pragas e das sementes do mato daninho.

Até chegar setembro — o que é o tempo de semear-se o fumo — Macuco voltou a capinar a roça, e capinou quatro semanas a fio. O tempo chegou, ele mexeu aplainou a terra, semeou a sementes nos canteiros, que a fechou a meia altura. para evitar o estrago das galinhas. Até passar dois meses — prazo que a planta pede para nascer e ficar no ponto de mudar-se — Macuco e a mulher levaram os dois meses no serviço da enxada, pois, quando iam chegando ao fim, voltava ao princípio, para repassar a capina.

O chão era grande, o tempo curto, mas o mato era maneiro e a paciência muita, para aguentar a mesma labuta todos os dias, e todos os dias o mesmo tempo: solão desde manhã até de tarde, sem chuva para refrescar a terra, sem nuvem para tapar o sol.

A noite já dava sinal, e o roceiro Macuco ainda lavrava a terra para a lavoura de meação. A mulher estava ao lado dele e batia enxada também, ajeitando a capina, ajuntando um monte num lugar, outro mais adiante. O menino e a menina trouxeram o fogo para queimar o cisco. O chão estava limpo em derredor, o céu também estava, a fumaça branca subia das fogueiras, acompanhando a viração.

O roceiro trabalhava calado, reparando; só existia para a enxada e para o silêncio; a vida se lhe concentrava em torno, não tinha olhares distantes... Tudo quanto lhe pertencia estava a seu lado: a mulher, os filhos, o cachorro, o fogo e as galinhas ciscando adiante da sua enxada — seu lar vinha trabalhar com ele, e se espalhava pela terra da sua lavoura.

Macuco suspendia o trabalho, deixava cair, a um lado do peito, o cabo da enxada na palma da mão — amarelo como cana de reino — cuspia na palma da mão — amarela e lustrosa — e olhava o ar... Todos os homens que trabalham a terra têm olhar sem vida; os outros não. Uns tem olhar de espanto ou de mistério; outros de sonho ou da mágoa; outros de indiferença ou desengano; o trabalhador da terra tem olhar de espera...

 Quando o sol se escondia, as galinhas era as primeiras a se recolherem ao seu mamoeiro, depois, a mulher com as criança e o cachorro, e por último, o roceiro Macuco. Pela terra, a tarde espalhava as sombras, e os últimos ventos do inverno espalhavam a fumaça branca das fogueiras de cisco.

A mulher acendia a lamparina de querosene, as crianças lavavam os pés na gamela d'água, comiam leite com farinha e iam se deitar na mesma cama, assim como vinham da capina; o roceiro e a mulher, lavavam os pés na mesma água, bebiam uma tigela de café com rapadura e farinha e iam dormir na mesma cama, assim com vinham da terra...O cachorro pulava para cima do fogão e ninguém ouvia o ressonar do homem nem o rosnar do cão, porque o roceiro cansado tem sono de pedra e o cachorro magro, esfomeado não rosna.

Daí a pouco clareava o dia; o roceiro Macuco abria a porta para a luz entrar; as galinhas desciam do mamoeiro; uma neblina rasteira cobria a terra preta da campina. O trabalhador bebia outra tigela de café com rapadura e farinha, batia a pedra, soprava na isca, acendia o cigarro, pegava na enxada e voltava para a terra. Ia sozinho, que os mais ficavam em casa — a mulher e as crianças — cada um com a sua a tigela, e o cachorro com um pedaço de angu frio; as galinhas, por sua conta, procuravam o que comer.

O tempo estava firme, o sol subia, rendia o serviço do roceiro, e a mulher mexia o almoço. A menina permanecia de cócoras ao pé da porta da cozinha, imóvel e calada, depois, se levantava, coçava a cabeça, espreguiçava e ia se acocorar mais adiante. O menino cortava um gomo de mamoeiro para fazer um pito comprido; neste meio, um pássaro preto cantava no pinheiro seco, o menino tirava o pito da boca, assobiava, arremedando o passarinho, e os dois ficavam cantando juntos.

No caldeirão de ferro, desde cedinho, já se cozinhava o feijão, e a mulher punha ao lado dele a panela de barro, de fazer arroz. Mexia um pouquinho cada qual, dava uma voltinha, atiçava o fogo, espiava dentro das panelas e ia se encostar à porta do terreiro. Ficava olhando o Chico, parado no meio do terreno preto, descansando um pouco. O marido, com chapéu de palha rasgado, enfiado na cabeça, a roupa pendurada no corpo, mal comparando, imitava um judas de espantar passarinhos de arrozal... Voltava ao fogão, mexia outra vez a panela de arroz, picava as couves e ia buscar os torresmos.

Pouca panela, pouca comida, trabalho pouco — logo o almoço ficava pronto. A mulher dava mais uma voltinha, empilhava três pratos de folha, à beira do fogão, e gritava pelo Chico. E assim que o marido chegava, cada um recebia o seu prato, a sua colher, cada um ia se acocorar num canto da cozinha, e ninguém dizia uma palavra. A mulher servia o prato seu, dela, e ficava de pé, encostada ao fogão, comendo. O cachorro, sentado sem se mexer, olhava o prato do menino, depois, olhava a menina; por fim, olhava só para a mulher e ficava, com os olhos compridos, esperando.

Os pratos de folha se empilhavam de novo à beira do fogão; o roceiro Macuco puxava um tamborete, sentava-se, olhava a mulher e dizia:

— Agora, vamos descansar um pouco...

Lá fora, o joão-bobo cabeçudo vinha voando com a sua companheira, pousavam no mesmo galho da árvore e gritavam simultaneamente, um ao outro: " Currupiro!" "Currupiro!" Depois, se achegavam, corpo com corpo e ficavam imóveis, bem juntinhos...

O roceiro Macuco não afrouxou na labutação nem perdeu a hora do dia, afora os domingos, que tinha de ir à vila buscar mantimento e querosene, tudo fiado. O fazendeiro respondia pelos seus gastos, é certo, mas precisava ter sempre dinheiro para comprar uma ou outra coisa de necessidade. Então, vendia frangos, ovos, juás, pinhão, fruta e tudo quanto o fazendeiro deixava tirar do mato, sem pagar.

E foi indo nessa toada, até preparar a terra e chegar o tempo da plantação das mudas. Aí ele e a mulher não largaram mais o chão — abrindo cova e plantando, abrindo cova e plantando. Os dois ficaram tão mestres na abertura das covas, que conservavam, entre uma e outra, a distância certinha de cinco a seis palmos, o que era preciso ser feito, por via de ser a terra de boa qualidade.

O plantio pedia muito cuidado: só se aperta, na terra, a raiz e não a haste; portanto, para ajudar, eles ensinaram os filhos, e os filhos plantavam com delicadeza e perfeição, que as mãos das crianças não tinham tamanho nem força para machucar as plantas novas.

O tempo corriam bem todos os dias, e assim que o campo ficou plantado, choveu uma chuva mansa, fresca, criadeira, as mudas se firmaram nas covas, as folhas se aprumaram e principiaram a crescer à vista dos olhos.

O roceiro e a mulher redobraram de cuidados e de interesse, tratando com enxada a terra da plantação, removendo a areia das covas e qualquer outra coisa que pudesse prejudicar o desenvolvimento da planta. Os filhos continuavam aprendendo e ajudando; sabiam apanhar as folhas que iam morrendo e secando, na parte inferir dos pés de fumo, a arrancar o mato com as mãos, sem ofender uma folha que fosse.

Toda a gente pensava só no fumal, e ninguém viu que o fumal tomou conta da terra, cresceu, cresceu gordo, mole, viçoso: tinha pé do tamanho de um homem, tinha folha larga, de mais de gêmeo. Nem um pé falhado, nem uma folha praguejada. A terra preta, macia e boa, criava, por igual, o fumo, planta que quer força do chão para vingar.

O dono da terra foi ver a lavoura, andou abaixo e acima, espiando aqui e ali; calculou, com uma olhada, o valor da colheita, gostou do que viu mas não disse nada. O roceiro Macuco, que estava junto dele, também e calava. Por fim, ao voltar para a fazenda, o homem disse isto:

 — Como é que vai o seu gasto, na vila?

 — Vai indo, eu compro só meizinha e mantimento...

 — É isso mesmo. As coisas estão ficando ruins, a gente precisa minguar as despesas...

O fumal começou a apendoar; as flores tinham pressa de nascer; então, marido e mulher deixavam o trabalho e se recolhiam, esperando que também os botões apontassem logo. E todas as manhãzinhas, voltavam juntos a verificar se o fumal estava abotoado, até que, um dia, encontraram os primeiros botões nascidos de madrugada. Aí, começou a capação, que é a desponta que se faz para os pés se tornarem iguais, e para dar força às folhas.

O pai, a mãe, os filhos, levantavam-se ao romper do dia e iam para a desponta; almoçavam e iam para a desponta; de noite, deitavam-se para dormir, com os dedos doloridos de tanto despontar, de tanto arrancar um botãozinho tão mole e tão mimoso!

E assim, despontaram muitos mil pendões; os dias foram passando, e chegou o tempo da desolha — que é o trabalho de se tirarem os brotos que nascem entre as folhas e a haste — trabalho incessante porque o fumo brota sempre. Enquanto o broto é novo, se quebra facilmente com os dedos por isso as mulheres e as crianças ajudam muito; mas é preciso se desolhar com cuidado, para não maltratar as folhas.

As crianças aprenderam o serviço, e cedinho já iam para a lavoura. O fumal mandou na casa; levou a gente do roceiro para o seio da sua folhagem; governou a boca e a força da família; mandou em toda a gente, e toda a gente lhe mostrava respeito e amizade, porque não parava nem se cansava.

A mulher e o marido já não trabalhavam pensando só no ganho, no lucro prometido; a ambição deles era também a ambição do pai que quer ver os filhos criados; do criador que quer criar o seu gado; do trabalhador que deseja concluir sua obra. Macuco percorria o fumal, examinava pé por pé; todos eram irmãos, cresceram juntos, porque a força era igual naquela terra e tanto. E o roceiro quedava, olhando o chão preto, fincava no chão o dedo grande do pé e remexia, com ele, a terra fofa, como se fosse um porco fossando.

A terra, ao redor das plantas, estava coalhada de borboletas arrancadas. A mulher e as crianças tosquiava, tosquiavam, até ficaram com as mãos amortecidas, com um mau jeito nos pulsos, com as unhas descarnadas, doídas, de tanto quebrar o brotinho...

— Corta, gente!

— Dói, mãe...

— Corta, gente!

Dessa maneira foram arrancadas milhares e milhares de borbulhas, até se acabar o ano e começar o outro. Mas antes que viesse a colheita, o meeiro Macuco tratou de construir o rancho, livre de sol e de chuva, com os seis andaimes para a seca das folhas do fumo. O rancho era coisa simples: quatro esteios de pouca altura, um pau de cumeeira, uma coberta de sapé, dos dois lados, até o chão, e dentro, os varais para se estenderam as folhas colhidas. Como na fazenda não havia sapé para a coberta, o fazendeiro mandou cortar no vizinho, e pôs na conta das despesas: a madeira — meia dúzia de varas — foi tirada ali mesmo...

Chegou o mês de maio, As folhas da parte inferior dos pés de fumo começaram a amadurecer tomando uma cor amarelada ao mesmo tempo que a parte de cima- a feição da folha — ficava toda empipocada.

Principiou a colheita. Enquanto o roceiro limpava a cultura — que a colheita se deve fazer no limpo — a mulher apanhava as folhas de vez, que as crianças iam transportando para o rancho...

— Mãe, ocê é que nem formiga.

 — Ocê é que nem formiga-carregadeira...

A colheita se faz aos poucos, e leva tempo — cada pé dá duas, três e mais apanhadas. As folhas vão sendo penduradas nos varais do rancho, onde ficam uns cinco dias, para depois se tirar, com todo o cuidado o talo de cada uma. O talo cai com facilidade, basta dobrar a folha sobre ele mesmo para logo se separar.

Então se faz a torcida, o cordão e, por fim, o rolo, que se entrega ao fabricante.

O fazendeiro foi passear na roça para ver a a colheita e, decerto gostou porque se mostrou conversando. Aí, o Macuco lhe disse que não podia dispensar o ajutório de camarada. O fazendeiro concordou, e resolveu mandar ver por conta da meação um prático no serviço de torcer e de encordoar o fumo.

Logo depois, veio um prático trabalhador e diligente. A apanha levou um avanço; as crianças aprenderam, também, a estender e destalar as folhas e, desse modo, todo o mundo trabalhava em tudo, e tanto trabalharam que um dia a colheita se acabou, todas as folhas forma torcidas, encordoados, enroladas e entregues ao fabricante.

O fumal ficou que era vara só...

No mês de julho, o fabricante deu conta do fumo, preparado e enrolado, A quadra era boa; o fazendeiro aproveitou e vendeu bem num lote só. Mandou tirar as contas do Macuco tanto as da vila, com as da fazenda; descontou as despesas feita; apurou a rendição e acertaram o trato. A parte que tocou a cada um foi de um conto e muito, quase dois. A do fazendeiro saiu inteirinha, e a do roceiro. Macuco, descontadas todas as despesas, deu-lhe para salvar um jornal de cinco mil e quinhentos — não se contando a o ajutório da mulher — com uma sobra de setenta e cinco mil réis...

O fumal produzira com abundância de compensar, mas o trabalhador ficou na mesma. A meação só lhe deu para viver um ano, com jornal um pouquinho melhor que jornal de enxadeiro... Está certo. A mulher e as crianças ficaram doentes, a família teve de comer e o dinheiro num ano subverteu-se.

O fazendeiro não explorou trabalho de ninguém, com maldade ou com imposição, fez negócio limpo e tratado. Não lhe cabia culpa pelo sucedido; tanto que, vendo o meeiro desapontado, sem lucro no bolso e pior de miséria, ficou com dó e lhe deu uns cem mil-réis, do seu bolso.

 — Mas olhe que este dinheirinho que estou te dando não tem nada com o trato da meação. Trato é trato.

 O roceiro Macuco recebeu o dinheiro, com os olhos no chão, sem dizer uma palavra; por fim, levantou a cabeça e disse:

 — E agora, o que eu hei de fazer?

 — Pois, uai! você continua aí, vai trabalhando de jornal: cinco mil-réis a seco. E já pode pegar, amanhã, na corta do fumal, para a soca.

O trabalhador não disse nada a ninguém, nem permitiu que ninguém lhe dissesse nada. De tarde, foi à bica, amolou a foice e, no outro dia cedo, principiou a cortar as hastes desfolhadas do fumal colhido. O fumal velho, podado em agosto, torna a se enfolhar, dá boa soca e seve bem o que dá...

A poda se faz conservando cada pé na altura de três quartos, mais ou menos. A princípio, o roceiro não cortava na medida certa, depois, pegou a toada e a foice ia e vinha, cortando as plantas na mesma altura. O homem, sem se interromper, avançava para a frente, para a direita, para a esquerda, golpeando com braçadas largas. Olhando de longe, parecia um possesso, de foice em punho matando a torto e a direita. Dir-se-ia que o lavrador enfurecido se vingava da planta. Mas o roceiro Macuco não era homem para destruir os frutos da terra, ele reconstruía a sua obra de lavrador...

Acabou-se a poda. Quando a última vara caiu, o roceiro parou na orla do campo arrasado, cruzou os braços e, apoiando-se no cabo da foice, ficou matutando e contemplando.

À sua frente estende-se o chão preto, a terra limpa, seca, ouriçada: nem um fiapo de capim, nem um olho de broto espiando; cada pé de fumo podado virou um estrepe agudo. Mas as raízes estão vivas no fundo da terra, esperando que voltem as chuvas criadeiras do tempo das brotas; então, tudo vai outra vez nascer e verdejar, crescer e ocupar a terra erma. A soca vai cumprir a promessa do roceiro Macuco...

De repente a tarde entristeceu.

Pelos ouvidos do roceiro passa zunindo o vento que vem trazendo de longe ma nuvem cor de chumbo. Macuco levanta a cabeça e acompanha com a vista a nuvem escura que vai lenta pelos ares...

A ventania invade os matos, balanceia os pinheiros duros, fustiga desde a graminha até a perobeira que sobe céu acima, enche o espaço e vai levando, para mostrar mais adiante, a todos os trabalhadores da terra, a nuvem escura cor de chumbo, que prenuncia o tempo fecundo das águas.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

Ruínas (Conto), de Godofredo Rangel

 

RUÍNAS

Alquebrada de velhice, a casa mal se firma agora nos esteios oblíquos e comidos de cupim. Vergastada dos temporais e corroídas polegada a polegada pela ação erosiva do tempo, as paredes raros vestígios mostram da última mão de cal levada vinte anos antes.

As ripas, enxadrezadas com os paus a pique, exibem por toda a parte sua ossatura carunchosa. É um cadáver de casa, uma carcaça decomposta, já mostrando as costelas descarnadas. Ao lado, onde foram as tulhas, vê-se hoje um montão de escombros; e, no eirado, para onde se abre a porta principal, cresce o capim desafogadamente. Contrastando com esse ar de morte e abandono e dando uma nota ridente de vida ao vetusto pardieiro, sobe dos fundos uma espiral de fumo azul, que se desfibra lentamente no espaço.

Aí moram o velho Próspero e siá Marciana, pais do Américo. Já rumando os oitenta ou noventa anos (nem sei quantos!) dão exemplo de serena velhice, sem amarguras contra a vida, nem o pesar de deixá-la. Enquanto pôde, o velho trabalhou. Foi fazendeiro, teve grandes rebanhos de gado e extensos alqueires de plantações; mas, por ser bom e confiante, o que tinha foi-se rapidamente, quando sua atividade começou a declinar e ao peso dos gastos não podia opor equivalente receita. Ingratidões e abusos de confiança levaram-lhe até o último vintém; o que porém se lhe salvou do soçobro, e à sua companheira, o único e precioso tesouro inconsumptível de que não os puderam esbulhar, foi a branda alegria d’alma que os acompanhou em todas as vicissitudes do passado, e que dá à velhice de

A ambos uns toques de mocidade vivaz, como festões de madressilvas alastrando sobre ruínas. Paupérrimos, a própria vivenda em que moram é alheia — pertence a um irmão mais moço de Próspero, fazendeiro “desempenhado”, e tão sovina que, o ceder-lhes por favor essa moradia, torna a todos boquiabertos. Os velhos nunca se queixam; mas sei que o proprietário, o major Claudino, não os deixa em completo sossego. É uns dez anos mais moço que Próspero. Foi este quem lhe deu a mão para começar a vida e continuá-la; e também foi Claudino quem abocanhou os últimos restos de sua fortuna, valendo-se de contas pouco compreensíveis e de juros misteriosamente intricados. Nessa época, como quisesse expulsar os velhos da fazenda, levantou essa descaridade tal clamor entre os conhecidos e parentes, que Claudino cedeu, a contragosto, deixando-lhes o usufruto da casa e de algumas braças de terreno. “Estão velhos, pouco hão de durar”, dizia para conformar-se. Mas os velhos resistem valentemente aos embates dos anos e Claudino com isso impacienta-se, diz impertinências, reclama contra o descalabro crescente de tudo e quer levá-los para sua própria casa. Próspero limita-se a replicar sorrindo e sem levar a mal: “Tem paciência, mano! Espera mais um pouco. Para o ano eu e a prima já estamos pescando mandis no rio da eternidade…” (A “prima” é siá Marciana. Dá-lhe tal tratamento, por terem esse parentesco.)

Enquanto esperam, pescam mandis no rio que passa aos fundos da fazenda. Tanto basta para esquecerem os anos e as enfermidades. Toda a tarde, Próspero, com o rosto encoberto sob as largas abas de um chapéu achamboado, entra em sua velhíssima canoa de peroba, que é preciso tentear com cuidados infinitos para não fazer água, e vai distribuindo aqui e ali, pelas duas margens, anzóis de espera e laços de capivara; e, sobre a madrugada seguinte, lá volta a correr os mesmos sítios, a dar balanço nos rendimentos da noite… E longe em longe acontece acabar de matar no anzol, a pontoadas de chuço, um enorme dourado, que alegremente traz às costas, ladeira acima, e que, resfolegando, num gesto triunfal, atira pesadamente sobre a mesa de jantar.

Durante o dia ele, mais a velha, radicam-se à sombra dum ingazeiro, cujas ramarias espalhadas protegem do sol, e pescam no remanso que embaixo faz o rio e que transformaram em ceveiro. E vendo-os ali juntinhos, as varas paralelas curvando-se ao peso das chumbadas, cotovelo contra cotovelo, a gente adivinha que os dois irão juntinhos para a cova, quando algum deles assentar de zarpar para as trevas eternas, que talvez já estejam tão próximas como a primeira curva do rio.

O velho Próspero foi caçador apaixonado. Quando lhe peço que me conte trechos de sua vida vêm estes, as mais das vezes, misturados com episódios de caça; o primeiro parto de siá Marciana, ligava-se intimamente com a aventura de uma célebre Pirata, cadelinha onceira; quando lhes morreu o segundo filho, estava, havia três dias, batendo mato bravo, atrás duma bandeira de queixadas; e, ao voltar a casa, carregado de magníficos despojos, seus gritos de triunfo morreram-lhe na garganta, ante o cadaverzinho exposto numa mesa, entre quatro velas altas. Agora que lhe falta resistência para varar brenhas e desentocar onças, canaliza o seu furor venatório contra os peixes, contentando-se, quanto a caças de pelo, em armar às capivaras que lhe destroçam o arrozal.

Invejo-lhe a mania da pesca. Escolheu-a bem para passatempo da velhice, pois não depende de agudeza de vista, nem de músculos reforçados. Seus braços de canoeiro prático, embora trêmulos, ainda sabem o jeito de “temperar” uma canoa, sem excessiva despesa muscular. Lastimável é o escritor que, ao se dobarem os anos da segunda metade da vida, nota em si incapacidade crescente para obter a tensão espiritual que engendra as obras-primas; ao meticuloso sábio que esmiúça ao microscópio os elementos invisíveis das células, deve ir-se-lhe, com o acume da visão, o gosto pela vida. Ai dos que, em sobrevindo o momento, não estiverem aparelhados para empunhar a filosófica vara de pescar do velho Próspero! E isso o torna feliz. Tiraram-lhe a fortuna — tomou do anzol; arrebatem-lhe o anzol, inda resta o rosário; de modo que, sua bondosa simplicidade, se lhe perdeu a abastança, granjeou-lhe a conformidade na desgraça. Rememora os antigos anos de fartura, compraz-se às vezes em narrá-los, como um viajante relata as maravilhas que viu no decurso da viagem. Essas recordações têm para ele o doce ressaibo das boas coisas gozadas, sem que lhes sinta amargor por serem coisas idas.

Contou-me um dia que, no tempo de seu pai vivo, havia tantos escravos na fazenda, que davam de comer à molecada num cocho de que ainda no eirado restam vestígios. Despejavam ali dentro tachadas de canjiquinha e com uma buzina convocavam a miuçalha esparsa. De todas as senzalas, da casa, da horta, do pasto, negrinhos acudiam correndo, como uma horda de capetinhas nus. E as mãos avançavam sofregamente para a comida. “Ficava estivado de negrinho, tudo pelado”, explicou Próspero em sua linguagem pitoresca, acentuando a frase com um gesto para indicar a fila ininterrupta de petizes, de uma e outra banda do cocho. Por morte dos pais herdara bons lotes de culturas; veio depois a legítima da “prima”, o que ainda seu trabalho acresceu, nos anos felizes da mocidade. Por essa época povoavam-lhe a casa parentes e amigos. Até parecia hotel. Pessoas havia que lá passavam meses, a ares ou para caçar. Um tal Leonardo, comido de sífilis, permaneceu na fazenda mais de ano, em tratamento. Ao restabelecer-se, Próspero emprestou-lhe dinheiro para comprar um sítio. O pobre do Leonardo! se não tinha recursos para tocar a vida! Com esse princípio arranjou-a tão bem, que hoje é homem de largas posses. É verdade que os esqueceu e que, quando os cruza, mal bole no chapéu; mas anda tão atarefado, sua camaradagem é tão grande, que na cabeça, cheia de preocupações, não sobra espaço para cortesias fúteis. Negou-lhes uma vez auxílio — não por ingratidão, e sim porque o muito serviço põe a gente assim azaranzado e de mau humor, e a ele, coitado, serviço não faltava. O pobrezinho do Leonardo! Como a velha se lembrava ainda dele quase cego, babando pus, com a boca cheia de tumores que mal o deixavam alimentar-se, tanto que era preciso descerem-lhe leite à garganta por um canudinho de bambu! E agarrava-se a siá Marciana, chamando-lhe mamãe, e chorando, num retrocesso à infância, quase imbecilizado pela moléstia.

Entre outras passagens também contou-me que estanciara na fazenda umas semanas certo médico português. O Dr. Filipe, homem muito divertido, e a cuja figura evocada os velhos sorriam um para o outro. Sem clínica, vivia a correr terras, de sapatões ferrados e roupa no fio… Nem recursos tinha para viajar a cavalo; ia de lugar em lugar com a malinha às costas e bastão na mão, e por isso na cidade puseram-lhe a alcunha de Dr. De a Pé. Que maldade, coitado! Porem apelido num homem infeliz e sensível, que, ao falar na “terra”, marejavam-se-lhe os olhos, de saudades da mãe e da irmã, que lá ficaram tão longe, sem amparo, da outra banda do mar.

Mas os velhos sorriam, lembrados de certo episódio malicioso. Querendo aprender a caçar, esse bom Dr. Filipe mal sabia pegar numa espingarda. Deu ali seus primeiros tiros, e, a cada um, que assinalava um malogro, escapava-lhe um má-raios de desapontamento. Próspero, porém, não desanimava com o aluno, e repisava como estribilho: “Ainda espero ver um dia o doutor matar uma capivara!”. Afinal esse dia chegou. A mata virgem alastrava até tão perto da fazenda, que à tarde urus e inhambus vinham mariscar no terreiro, confraternizando com as galinhas e marrecos da criação doméstica. As capivaras, então, eram uma praga. Uma tarde foi visto um casal delas à beira do açude, ao fundo da horta. “Pegue na espingarda, Dr. Filipe, e venha!”, disse o velho. Foram até o açude. À sua chegada os grandes roedores mergulharam prontamente na água negra. Certo momento apareceu um focinho à tona, bem perto do Dr. Filipe. Ele atira à queima-bucha: “Má-raios!”. Outro tiro — por um milagre acerta. A cachorrada encarrega-se de tirar d’água o animal ferido, e sumariamente o acaba às dentadas. O doutor ficou radiante da façanha. Então o velho Próspero propôs-lhe uma questãozinha magana: “Doutor, o senhor, que é médico, entende muito de organismos vivos; por isso, diga-me se esta capivara é macha ou fêmea”. “Oh! nada mais simples!”, exclamou o doutor, ofendido pela insignificância da consulta. E olha o bicho despreocupado, depois examina-o atento, e concentra-se na análise e submete-o a uma inspeção conscienciosa e científica… Por fim desiste, no auge da perplexidade. VIDA OCIOSA Então Próspero solta uma casquinada: “É macha, doutor! Olha o focinho… Capivara macha tem um calo no nariz”. E os velhos riam-se, à evocação da descocha do Dr. De a Pé, por levar o formidável quinau.

Chegada a uma recordação como esta, mistura de antigas grandezas com reminiscências de velhas caçadas, a retentiva do velho transvia-se do fio direito da narração, e, esquecido do mais, deleita-se em memorar proezas de caçador. E é sobremaneira agradável ouvi-las, principalmente em torno de um brasido, em noite frígida. Se o tempo é desabrido, e as chuvas fazem das estradas extensos lameirais, reúnem-se nesses serões mais pessoas na velha fazenda, viandantes colhidos pelo temporal e que, ao abrigo de suas telhas hospitaleiras esperam estiagem propícia para a continuação da jornada. E quando acerta serem caçadores esses viajantes encharcados, ainda aumenta o prazer da palestra, pois cada um desfia o mais interessante de suas recordações. Quanto a siá Marciana, essa limita-se a comentar as narrativas do “primo” com as suas impressões pessoais de esposa extremosa: as angústias das longas esperas, o olhar pela janela verrumando o oceano das copadas que se derramavam em torno, ou sondando as últimas curvas das estradas, a medir o tempo com as pulsações do coração… Como tardavam os caçadores! Prouvesse a Deus não houvesse acontecido uma desgraça! E quando Próspero voltava, que júbilo ao vê-lo são e salvo, e ao apreciar, como entendedora, o porte da suçuarana que dizimara a matilha, ou o número de queixadas abatidos no bando!


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

3/26/2025

História de um cão ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel


HISTÓRIA DE UM CÃO

Vendo-se obrigado a fazer uma longa viagem por mar, a países desconhecidos, onde devia demorar-se algum tempo, um moço confiou a um amigo o seu cachorro.

— "Olha, Manfredo", disse o rapaz à despedida, "entrego-te o meu fiel Leão. É um animal dedicadíssimo como poucos, cheio de abnegação e afeto. É feio e está velho, mas peço-te que trates dele com todo o cuidado".

Manfredo era um estudante rico,, que vivia à farta.

Trouxe Leão para casa e ao passo que o cachorro ia pouco a pouco se lhe afeiçoando, ele aborrecia-o cada vez mais.

O cão tinha saudades do seu primeiro dono, e por isso vivia tristemente pelos cantos da casa.

Comendo pouco, emagrecia sempre, e tornava-se repugnante, cheio de lepra, com o pêlo a cair.

Manfredo procurava desembaraçar-se dele.

Levava-o para lugares distantes, fora da cidade, e aí abandonava-o; dava-o a pessoas da roça, mas Leão fugia e voltava sempre para casa.

Desesperado com aquela insistência, o estudante resolveu matar o cachorro.

Uma tarde saiu de casa, chamando-o, festejando-o.

A beira da praia, tomou um bote e mandou remar pela baía em fora.

Quando estava longe de terra, em lugar mais profundo, agarrou de súbito o animal e arremessou-o à água.

Leão olhou-o tristemente, como querendo queixar-se de tamanha ingratidão.

Manfredo voltou para terra, e saltou alegremente.

Chegando à casa, reparou que havia perdido a corrente do relógio, de onde pendia uma medalha encerrando o retrato e os cabelos de sua mãe morta — única relíquia que dela possuía.

O estudante, desesperado, maldisse de sua sorte. À noite, deitado, não podia dormir, pensando na perda do precioso objeto, que não daria por dinheiro algum.

De repente ouviu bater, arranhar a porta. Abriu-a.

Recuou espantado.

Leão, entrava, exausto, arfando, todo encharcado d’água.

Parou no meio do quarto, e deixou cair da boca a medalha de Manfredo.



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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)